domingo, 28 de março de 2010

Central do Brasil - Walter Salles

Lançado em 1998, Central do Brasil foi um filme que marcou época no cinema nacional, tanto por sua qualidade artística quanto por uma apuração técnica nunca antes vista no nosso país.

Dora é uma professora aposentada que ganha dinheiro escrevendo cartas para analfabetos na Central do Brasil, mas ao invés de colocá-las no correio, ela as rasga (as cenas dos depoimentos são mescladas com atores e pessoas reais). Sua amiga, Irene, a ajuda nessa empreitada. Juntas elas formam uma dupla de ex-educadoras solteironas e rejeitadas. Certa vez, aparece uma senhora chamada Ana, com o desejo de escrever uma carta para seu ex-marido, Jesus:

“Jesus, você foi a pior coisa que já me aconteceu. Só escrevo porque seu filho, Josué, me pediu e pôs na idéia que quer te conhecer.”

Na verdade, o que Ana realmente queria era rever seu marido, por ter criado a conhecida relação de dependência que leva tantas mulheres a se sujeitarem aos maus-tratos dos esposos.

A mãe de Josué morre atropelada, e este fica completamente sozinho no mundo, sendo que é apenas uma criança. O garoto é mimado e autoritário, mas Dora sente pena dele e o leva para casa. Ela, com a ajuda de um policial corrupto que só pensa em si e age pelas próprias leis, vende o menino para um abrigo que, conhecidamente, trafica órgãos de crianças. O remorso que sente é enorme, por isso decide “roubar” Josué.

Devido à situação delicada em que se encontra, Dora se vê obrigada a fugir para Bom Jesus do Norte com o intuito de entregar o garoto nas mãos de seu verdadeiro pai.

“Como eles sabem que há mil metros num quilômetro?” – Josué

“Eles inventam” – Dora

A viagem para Pernambuco é longa e, à medida que o tempo passa, descobrimos que a história de Dora se parece muito com a de Josué. As mães de ambos morreram cedo e ambas sofreram com a submissão existente quanto à autoridade do pai (assunto que envolve traição, separação e violência). A senhora acha que pode aplicar suas próprias experiências de vida na situação do menino. Pensa que ele está fadado a viver o mesmo que ela viveu.

À medida que as personagens principais adentram no interior do país, a fotografia se torna amarelada, da cor do sertão. O dinheiro fica cada vez mais escasso, o que leva a sucessivas artimanhas para matar a fome, inclusive o roubo.

Dora é uma mulher com um histórico de rejeição que começou quando era criança, com seu pai. Ela passa a se sentir atraída pelo caminhoneiro que, na ocasião, os dava carona. Por ser homossexual, ele não a corresponde, e isso acaba se tornando mais um peso na vida de Dora, pois é acometida por um sentimento de abandono. Ela não é nem um pouco vaidosa, nem cuida de si mesma. Isso é explicitado numa cena em que sua dificuldade ao passar batom é visível.

Nessa altura do filme, as expectativas de ambos os protagonistas estão frustradas. Josué chega ao seu destino, mas descobre que seu pai se mudara há muito. Ao ver a realidade, o garoto chora. Toda a idealização de um pai perfeito cai por terra. O novo conceito é de um pai que bebe, que é pobre e que não se sabe seu paradeiro no mundo.

Em alguns momentos a película nos lembra “Deus e o Diabo na Terra do Sol”, como na cena da romaria, a situação limite das personagens principais, em que o menino se perde de Dora. Ela o procura por toda parte mas, no final, Dora é que precisa ser encontrada, e Josué o faz com grande sabedoria. O garoto é, na verdade, a salvação da escrevedora de cartas.

Voltando a registrar os depoimentos de uma gente, o filme resgata a identidade de um Brasil que nem sempre é o que estamos acostumados a ver. São retratos de um povo apresentados com maestria pelo diretor. Há, na película, destinatários de todo o nosso grande país. O centro do Brasil muda do espaço urbano (exemplificado pelo metrô e seus surfistas) para o sertão.

Desta vez, ao invés das cartas serem rasgadas, são enviadas ao correio, numa demonstração da mudança de Dora, por causa do contato com Josué.

Os protagonistas, após mais uma tentativa fracassada de encontrar Jesus, decidem ficar juntos. A verdade é que a senhora se reconhece no menino e se identifica com a sua busca. Mas um encontro não previsto irá mudar totalmente a vida dos dois: Os irmãos de Josué explicam-lhe toda a história ocorrida na família. Havia uma carta escrita pelo pai, chegada há seis meses, a qual não tinham se atrevido a abrir. Dora lê.

“E um dia, estaremos unidos de novo: eu, Ana, Moisés e Isaías”

Ela completa: “E Josué, que eu quero tanto conhecer”. Essa última frase não estava escrita na carta, mas foi uma mentira necessária para que as expectativas e sonhos da criança não fossem dizimados, e que não fossem causados maiores danos à auto-estima de Josué.

Depois de tanto procurar, descobre-se que o pai estava muito perto de Ana desde o início da busca.

Ao final, Dora acorda cedo, veste o vestido que havia ganhado de presente de Josué e se maquia, num primeiro sinal de vaidade. Pega o ônibus de volta para o Rio de Janeiro ao mesmo tempo em que escreve uma carta para seu amigo e filho adotivo. Ela admite ter boas lembranças de seu pai. Diz que ficar com os irmãos será melhor para o garoto. Revela ter receio da despedida. Tem medo de que Josué a esqueça um dia. O garoto corre desesperado atrás do ônibus, embalado pela linda trilha sonora.

“Tenho saudades do meu pai

Tenho saudades de tudo

Dora”



2 comentários:

patricia mc quade disse...

que bonito a forma como vc recupera toda a história!
esse é um filme dos meus mais queridos no cinema brasileiro.
é de fato muito emocionante.
adorei a resenha!

:)

uma coisa curiosa é ver como a música vai se transformando ao longo do filme: da música mais clássica e moderna que se mistura ao som dos ruidos de automóveis, buzinas e vozes da multidão até chegar à música nordestina com a sua tão pitoresca rabeca e a rebelde viola que chegou ao brasil e se fez aqui nossa namorada.

deu vontade de ver o filme de novo.
bj grande.

Felipe disse...

Concordo totalmente Patrícia!
A trilha sonora tem papel fundamental.
Desde a música tema até as romarias.
Interessante pensar em como a música muda no decorrer do filme. Não tinha reparado nisso!^^
Beijos!