terça-feira, 29 de dezembro de 2009

Nota: Terra em Transe - Glauber Rocha


“O Homem é mais difícil de dominar do que a massa”


No filme Terra em Transe, Glauber Rocha já começa com o informe de que a estória se passa num país fictício, “(Eldorado. País Interior. Atlântico)”. Esse país vive um intenso clima de controvérsias políticas. O diretor se aproveita do tal clima para ilustrar as várias posições possíveis dentro desse âmbito. No decorres do filme, passamos pelos mais variados conflitos: o senador extremamente conservador, que construiu sua carreira apoiando ditaduras e traindo-as para se unir a outras mais fortes. O governador que constrói sua campanha eleitoral em cima de um retórica que apóia o proletariado, promete mundos e fundos e, quando é eleito, se vira contra o povo que o elegeu. A falsa esquerda, que só vinga seus ideais na teoria, idealizada e ideologicamente, mas na prática, é a favor de um governo opressor, que desvirtua dos seus valores originais apenas para que o poder não seja tirado de suas mãos. A mídia, que é a verdadeira controladora dos países atuais e que tem poder para, inclusive, alterar resultados de eleições, colocar e retirar pessoas da política. A violenta guerra entre partidos pelo alcance do poder, que pode até dividir um país (e por vezes já dividiu).

Glauber critica a falsidade que existe por trás dos ideais revolucionários da maioria, que é capaz de trair seus companheiros por uma oferta melhor que a que eles oferecem. Também há crítica à massa alienada, que age de acordo com a opinião da maioria, que é totalmente manipulável, que hora é a favor de um político, hora de outro. Uma massa que não pode chegar ao poder, pois se o fizesse, transformaria em ignorância e hipocrisia a política nacional.

O filme também surpreende no aspecto narrativo, pois ousa em criar cenas nas quais a abstração das idéias predomina, não sendo possível entender o filme se concentrando apenas no campo lógico. A montagem é totalmente original (o que sempre é esperado de Glauber), sendo que, certas vezes, pode-se ver a equipe de filmagem enquadrada no planos do filme.

Durante os anos de chumbo, Glauber Rocha, acometido de uma forte violência política, nos presenteia com sua obra talvez mais importante, uma reflexão poética e totalmente inovadora da situação em que o Brasil se encontrava naquela época.


“A praça é do povo como o céu é do condor”

(Castro Alves)


terça-feira, 22 de dezembro de 2009

Cinema Novo - Parte do projeto da disciplina "iniciação científica" - Escola da Serra

A Segunda Guerra Mundial causou grande rebuliço no cinema, o que fez com que vários movimentos emergentes se estabelecessem. Na década de 50, jovens muito incomodados com o cinema brasileiro, resolvem discutir novas temáticas e bons conteúdos para os filmes, inovações em termos de linguagem e, sem saber, iniciam um movimento totalmente vanguardista que viria a se chamar “Cinema Novo”. Esse movimento teria como características a inovação e ousadia de seus integrantes, a presença de um cunho extremamente artístico nas produções e nem um pouco comercial, as severas críticas sociais, os filmes simples (do ponto de vista da técnica) e de baixo orçamento, mas principalmente a vontade de retratar a essência do Brasil e mostrá-la aos próprios brasileiros.

O primeiro filme que pode ser considerado parte desse movimento é o “Rio, 40 Graus”, de Nelson Pereira dos Santos, que foi censurado sob a alegação de que, no Rio de Janeiro, a temperatura nunca passara de 36,6°. O filme mostrava a história de cinco crianças das favelas que vendiam amendoim em locais da cidade.

Pouco tempo depois, em meio à excitação dos jovens diante do novo estilo de cinema, surge o lema do movimento: “uma câmera na mão e uma idéia na cabeça”, que mostra a idéia de que para se fazer um filme, não é necessário muito dinheiro, basta uma câmera e uma boa idéia, pois a criatividade e a imaginação cuidarão do resto.

O Cinema Novo, no seu início, era composto por Glauber Rocha, Nelson Pereira dos Santos, Cacá Diegues, Joaquim Pedro de Andrade, Paulo César Saraceni, Ruy Guerra, David Neves, Luiz Carlos Barreto e Leon Hirszman. Nessa primeira fase, que vai até 1964, o movimento tratava principalmente dos problemas sociais nordestinos, uma vez que o nordeste seria tido como a “cara” do Brasil. Os temas mais comuns eram a miséria, a mitologia, a fome, os jagunços e o cangaço. Bons exemplos são os filmes “Deus e o Diabo na Terra do Sol” (Glauber Rocha), “Vida Secas” (Nelson Pereira dos Santos) e “Os Fuzis” (Ruy Guerra).

Com o tempo, o novo cinema brasileiro foi tomando corpo, e passou a concorrer a diversos prêmios no mundo todo, tendo ganhado vários, além de ter conseguido a simpatia do público e da crítica.

A Ditadura Militar

Na madrugada do dia 1º de abril de 1964, as tropas militares invadiram as ruas. Iniciava a Ditadura Militar, que duraria até 1985. A maioria dos jovens integrantes do Cinema Novo lutou radicalmente contra o militarismo, valendo-se de passeatas e, claro, manifestações através de sua arte.

Com a mudança na política, veio uma censura extremamente severa, que vetou quase completamente os filmes lançados no Brasil. Isso fez com que a produção no nosso país ficasse muito aquém do aceitável, gerando a fama falsa de que não há bons filmes brasileiros, que durou até a “retomada” da década de 90, iniciada com o filme “Carlota Joaquina”. Mas infelizmente essa fama permanece na mente de vários até hoje.

Quando um filme era censurado, seu copião era queimado, sendo assim ninguém jamais teria provas de que aquela película fora filmada um dia. Sabendo disso, os diretores precisaram encontrar uma nova forma de mostrar seus filmes, e a solução foi lançá-los no exterior. Agora os filmes continham aguçadas críticas à ditadura, como em “Terra em Transe”, de Glauber Rocha.

Os diretores, que antes eram apenas garotos de vinte anos querendo mostrar seus filmes, se tornavam verdadeiros monstros do cinema.

Em 1968, já em seus anos finais, o Cinema Novo finalmente encontrou a sua identificação com o público. As obras passaram a ser profundamente inspiradas pelo tropicalismo, e os filmes começaram a se valer dos símbolos do exotismo nacional, como palmeiras, bananas, araras, periquitos, índios, entre outros. Mesmo em declínio, o Cinema Novo ganha um dos filmes mais importantes de sua breve história: Macunaíma, de Joaquim Pedro de Andrade, que pela primeira vez, misturava ao movimento, características da chanchada.

No início dos anos 70, o Cinema Novo estava em crise. Grande parcela da culpa cabe à ditadura, que forçou grande parte dos integrantes do movimento a se exilar. As novas produções se tornavam fracassos e os diretores acabaram se conformando com a situação política do país. Os mais jovens cineastas do Cinema Novo relutaram em ceder. Permaneceram firmes em sua concepção de cinema, até que o movimento finalmente se desfez. As ideologias iniciais mudaram, assim como mudara o contexto político.

Surgia, então, o Cinema Marginal, um quase rival do Cinema Novo, porém com alguns pontos em comum. Enquanto o segundo questionava os processos políticos decorrentes no Brasil, o outro criticava unicamente o padrão da narrativa cinematográfica de uma forma tosca e debochada. Os diretores do Cinema Novo, então, rumaram por outros caminhos. Cada um seguiu o seu, muitas vezes se desvirtuando das idéias e concepções de juventude, mas sem nunca retirar de si a essência que fez desse, um dos maiores movimentos do Cinema Mundial.

O Cinema Novo continua presente...

O movimento de nome Cinema Novo, com todas as suas características, já há muito foi extinto. Mas seus ideais têm uma força muito poderosa, que continua encantando jovens e os influenciando. Com o advento das mídias digitais, se tornou muito fácil ter acesso às produções áudio visuais. Se antes era necessário pagar o equivalente a quatrocentos reais para se filmar onze minutos em película, hoje é possível filmar duas horas por menos de vinte reais (ou até de graça, dependendo da mídia). Isso transforma o modo como a sociedade se comporta diante da arte, pois se antes as pessoas eram receptoras de opiniões pré-formadas, agora elas serão as formadoras das opiniões, irão participar ativamente da produção cultural do país que é próprio delas, e cada uma tentará transmitir o que sabe, de acordo com o que dispõem.

Nisso, vemos as ideologias do Cinema Novo emergirem novamente. As produções de baixo custo se fazem presentes mais do que nunca. A inovação se torna uma procura diária do cinema contemporâneo (e da arte contemporânea de forma geral). A ousadia se mostra na conciliação de vários estilos e narrativas cinematográficas. As perspicazes críticas sociais fervem num caldeirão de possibilidades e agora todos podem dar mais alta voz às suas indignações. A poética está em constante formação, variando de um cineasta para outro, assim como variam as percepções de mundo.

Compreendo que o Cinema Novo teve uma intensa importância política para o Brasil, e ainda a tem, já que seus filmes são eternos e atemporais, e suas críticas se encaixam perfeitamente a situações que eventualmente nos deparemos nos dias de hoje. Sua herança está viva e presa a essa gente que está e sempre estará em constante busca e formação de sua identidade cultural.

É por esses e outros motivos que eu acredito cegamente que a popularidade do cinema sempre vai existir, e este nunca terminará sua história. O cinema é uma forma de adquirir conhecimento, e deve ser entendido como tal. É natural que suas possibilidades aumentem cada vez mais, e com elas, a criticidade do público.

Se esse movimento influenciou a visão de cinema de grande parte dos diretores da contemporaneidade, por outro lado, influenciou também a visão de milhares de pessoas que nunca se ligaram “oficialmente” à produção artística cinematográfica, já que os filmes sempre visaram o alcance ao grande público e a discussão de temas comuns entre os membros da sociedade brasileira. Foram discutidos o cangaço, a fome, a miséria, a pobreza, a cultura, os símbolos nacionais, as tradições, a ditadura, a história e mais uma infinidade de temas.

Vivemos em uma época que já não é mais a que se contextualiza o Cinema Novo. Em nossa época há costumes diferentes, dogmas diferentes, comportamentos sociais diferentes e demandas diferentes. A consciência das pessoas mudou, e isso pesa nos seus interesses. Mas pontos em comum entre diferentes tempos são perfeitamente cabíveis. Naquela época, jovens quiseram fazer cinema e mostrar seu mundo para o Mundo, hoje, jovens querem fazer cinema e mostrar seu mundo para o Mundo. Naquela época, os jovens quiseram mudar o Mundo, hoje, os jovens querem mudar o Mundo.


sexta-feira, 18 de dezembro de 2009

Persona - Ingmar Bergman


"O irrealizável sonho de existir, não o de parecer, mas o de ser"


Ao organizar minhas idéias para escrever este texto, a impressão que tenho é que deixei escapar muita coisa, mesmo tendo assistido o filme mais de uma vez. Mas se tratando de uma obra-prima tão complexa do cinema, não poderia ser diferente. Em síntese, o filme nos mostra uma atriz (Elizabeth) que, por um motivo misterioso, opta pelo silêncio no meio de uma apresentação da peça “Electra” e determina que nunca falará novamente. Uma enfermeira (Alma) é designada para observá-la e, juntas, vão morar numa casa no litoral.

Tudo parece colaborar para fazer do filme uma obra-prima ou “um marco na arte moderna”, como afirmam alguns. A começar pela antológica seqüência inicial, na qual imagens, aparentemente sem sentido lógico, são mostradas: o processo de ligar um projetor de cinema (num exercício lindo de metalinguagem), um falo ereto, uma aranha, um filme antigo, a mão de Jesus sendo pregada numa cruz, os órgãos internos de um cordeiro, dentre outros. É uma cena que nos lembra a questão do “inconsciente no cinema”, proposta por Buñuel e Dalí.

Também chamo a atenção para a brilhante direção de Ingmar Bergman (como sempre, maravilhoso), a linda fotografia de Sven Nykvist e as atuações fantásticas e viscerais das atrizes Liv Ullman e Bibi Andersson.

Neste filme, Bergman volta a dois de seus temas recorrentes: o silêncio e a relação lesbiana entre duas pessoas (que não são, necessariamente, homossexuais).

Quando chegam à casa de praia, as protagonistas se tornam amigas. Alma sente uma profunda admiração por Elizabeth e tenta compreender o motivo de seu silêncio. A enfermeira se sente confortada pela falta de som e à vontade para falar de sua vida. Ela conta coisas que nunca havia dito a ninguém, como a vez em que transou com dois desconhecidos numa praia. Nos dias atuais, a correria da rotina torna impraticável uma conversa como esta. Isso nos mostra que o silêncio (saber ouvir) é o caminho para a sinceridade e que tudo que queremos é alguém que nos ouça.

A admiração de Alma cresce e Elizabeth se mostra cada vez mais enigmática, até que um dia a enfermeira lê uma das cartas da atriz e descobre algo que a deixa desapontada: Elizabeth escutava-a e lhe dava atenção apenas para estudá-la, pois no fundo, ela a encarava como um interessante objeto a ser observado. A atriz se revela uma mestra em penetrar na mente alheia e dissuadir opiniões, mas isso não inibe o fato de que ela gostava verdadeiramente de Alma.

A enfermeira fica chateada, e decide insistir que Elizabeth fale algo, uma palavra que seja. O silêncio pode ser algo que todos queremos, mas o silêncio inabalável se torna insuportável. Alma ameaça jogar-lhe água fervente na cara e, finalmente, a atriz diz a frase: “não faça isso!”. Depois de semanas calada ela abre a boca com apenas um fim: protestar.

Com o tempo, as protagonistas desenvolvem uma relação de entrosamento emocional fortíssimo. A atração que sentem, uma pela outra, se torna sexual, pecaminosa. Isso desencadeará um final decididamente surreal. Começam a acontecer constantes trocas de identidades entre as duas, sendo que até mesmo o marido de Elizabeth se confunde ao tentar discernir qual mulher é qual. Elas se tornam uma só pessoa (numa cena em que os rostos das personagens se fundem). Atriz e enfermeira são lados da personalidade de um mesmo ser humano. A vida de uma reflete na da outra e isso resulta num sentimento de repulsa. Alma deseja se desvencilhar dessa enigmática crise de identidade, mas não consegue. A enfermeira quer atingir emocionalmente a atriz e vice-versa. Para conseguirem isso, elas fazem com que surjam os fantasmas do passado de cada uma. Ambas se frustraram terrivelmente como mães, como “doadoras da vida”.

Por fim, elas voltam ao início. Estão novamente na sala de hospital do início do filme, agora com uma ligação emocional mais tênue, como se tudo fosse uma lembrança distante. Alma obriga Elizabeth a dizer “nada” e a deita numa maca. O perigo do silêncio já não existe mais, nem a intimidação que ele representou durante o filme.

Este é um filme que fala sobre os papeis que desempenhamos durante toda a vida e a face que mostramos para determinadas pessoas que nos rodeiam. Não somos a mesma pessoa para nossos pais, amigos, colegas de trabalho, escola, filhos, dentre outros. Uma atriz é uma mulher que, no palco, abstrai de parte da pessoa que ela é e incorpora características da personagem nas suas próprias que sobraram. Por isso Bergman escolheu uma atriz como personagem principal. Personagem essa que cansou de representar (não só no palco, mas na vida) e cansou de mostrar uma face diferente para cada grupo de pessoas que aparece na nossa vida. O único modo que encontrou de realizar tal feito, foi fechando-se em seu silêncio, pois falar também é uma forma de atuar. Ela queria se mostrar nua ao mundo, tal qual ela é, desprovida de experiências anteriores. Como uma folha de papel em branco, pronta para ser preenchida. “O irrealizável sonho de existir, não de parecer, mas de ser”. O próprio título do filme exemplifica isso muito bem: “Persona”, do latim, máscara.

Durante o filme, Alma vê seus maiores sonhos ruírem: casar-se, ter filhos e uma vida estável ao lado do marido, enquanto Elizabeth quer se livrar desses papeis pré-concebidos pela sociedade.

“Quando quis tirar a máscara, estava apegada à cara”

(Fernando Pessoa)

As faces que mostramos (um lado parcial do que realmente somos) ou as nossas máscaras, tomam conta da nossa personalidade. Isso é uma coisa que talvez seja inerente ao ser humano e natural do nosso comportamento. Não somos melhores nem piores por isso, apenas somos. A tentativa de nos livrarmos das nossas personas é uma tarefa quase impossível, pois se conseguíssemos, seríamos uma farsa. Afinal, somos o resultado da sobreposição das nossas personas.