sábado, 24 de abril de 2010

Má Educação - Pedro Almodóvar

“Má Educação” é um dos filmes mais vertiginosos da carreira de Almodóvar. Ele conta a estória de Enrique e Ignácio, duas crianças que se apaixonam, se separam e se reencontram muitos anos depois.

Já pela abertura do filme, reconhecemos o processo autoral do diretor. O vermelho forte, a música e as imagens quase caricaturais. Como não podia deixar de ser, temos outra vez a metalinguagem. Enrique é um diretor que está no meio de um bloqueio criativo. Ele passa o dia selecionando notícias interessantes nos jornais, para que lhe ocorra alguma idéia. É nesse momento que Ignácio, uma velha paixão da juventude, toca a campainha. O amor dos dois vem dos tempos das primeiras experiências e da idealização.

O roteiro “A Visita”, que Ignácio escrevera, é uma recapitulação de sua infância e uma criação fantasiosa de como ele queria que sua vida adulta fosse. Uma expressão de fantasias ridículas e absurdas, mas que nos agradam quando pensamos nelas. São ânsias e desejos que dizem respeito ao momento do reencontro de ambos os apaixonados, mais uma vez idealizado. Vale ressaltar que Almodóvar diferencia a estória real do filme da do roteiro alternando widescreen e fullscreen.

Nos é apresentada a existência de Padre Manolo, um pedófilo que abusava sexualmente de Ignácio e que foi o responsável pela separação dos protagonistas.


“- Por minha culpa

- Por sua culpa

-Por minha culpa

-Por sua culpa

-Por minha máxima culpa”


O sangue desce pela testa de Ignácio, dividindo-a em duas, assim como o faz com sua vida.

Mais uma vez o diretor nos coloca temas polêmicos e os discute com naturalidade. Nesse caso, temos novamente a homossexualidade, os travestis, o uso de drogas e o abuso sexual de menores. Numa crítica à igreja, Almodóvar faz uma alusão a uma velha prática da primeira metade do século passado. Quando alguém desconfiava que havia um jovem homossexual na família, mandava-o para o seminário, onde se livraria do “dever” social do casamento. Lá, ele sofria abusos de padres mais velhos que também haviam chegado ali pelos mesmos motivos, traumatizando-o. Assim, quando crescesse, o jovem provavelmente se tornaria pedófilo, assim como os outros, e abusaria dos novos adolescentes que entrassem no seminário, tornado-se um ciclo.

Apaixonados, os garotos se tocam pela primeira vez num cinema. Enrique se diz hedonista. Muitos criticaram o filme por tratar de crianças pervertidas, mas a homossexualidade é sentida desde a infância. O processo de experimentação e descoberta do movimento sexual é similar para heterossexuais e gays. Vemos, nos garotos do filme, as mesmas coisas que vemos em nós mesmos quando nos apaixonamos pela primeira vez. Como na linda cena que um gol é errado de propósito. Nós nos reconhecemos neles. Isso é uma coisa universal, não importa a nossa orientação sexual. O diferencial, no filme, é unicamente os traumas sofridos pelos garotos por causa dos abusos do Padre Manolo e pela separação violenta.

A cena na piscina pode ser encarada como apelativa, mas deve ser entendida como um avanço na quebra de tabus e na aceitação da homossexualidade. Trata-se de certa abertura sexual. Foi a primeira vez que um filme com um alcance de nível internacional ousou tão profundamente numa cena erótica entre homens. Outros vieram depois.

A dificuldade que Enrique tem em chamar Ignácio pelo seu nome artístico demonstra sua desconfiança. O sexo simboliza a busca daquele pela verdadeira identidade deste e sua curiosidade. Mostrando que não podemos fugir de quem nós somos, Angel é desmascarado. Descobrimos que ele não era Ignácio, e sim Juan, seu irmão.

“A Visita” termina assim como termina o filme, com Ignácio morto.

“Não temos testemunhas, apenas Deus, mas ele está do nosso lado.” Dizem os assassinos, padres divulgadores dos interesses da igreja.

Juan é, de fato, um grande ator. Pela forma com que usa Padre Manolo e pela facilidade com que engana Enrique. O final não podia ser menos “almodovariano”. A perseguição obsessiva entre as personagens termina de forma trágica e o protagonista continua a fazer cinema com a mesma “paixão”. As citações cinematográficas, muito ricas nessa película, caracterizam um estilo que se estende até os dias de hoje. A trilha sonora é sempre magnífica e a fotografia tem seus grandes momentos. Apesar de não estar entre os melhores da carreira do diretor, “Má Educação” é sedutor e talvez encante pela beleza, sensibilidade e naturalidade com que trata de temas que costumamos julgar tão mal.



sexta-feira, 23 de abril de 2010

Pedro Almodóvar

Almodóvar começou sua carreira na Espanha como a representação do movimento “La Movida Madrileña” na sétima arte. “La movida” se concretizou nas capitais no final da década de 70, após a morte do ditador Franco. O clima era de liberdade. Após anos tão densos, ninguém queria fazer arte com compromisso político. A idéia era de libertação, de prazer e de aproveitar a vida. Assim, vieram obras muito coloridas e vívidas. Também era um tempo de abertura sexual. A mulher ganhava mais destaque no contexto da Espanha e começava um processo de aceitação da homossexualidade.
Nesse âmbito, o diretor ganhava fama. Suas estórias eram baseadas nos tempos em que fora funcionário público e drag queen. Sua carreira se divide em duas principais partes: a década de 80, quando fazia comédias escrachadas, porém com grande refinamento. A exemplo, “Pepi, Luci, Bom y Otras Chicas del Montón”, “Maus Hábitos” e “Que Fiz eu Para Merecer Isso?” Já a segunda fase, é marcada por uma preocupação em discutir a condição humana, sem nunca abandonar os elementos de comédia. O resultado são filmes de intensa dramaticidade sobre assuntos que tocam a todos nós. Identificamos-nos com eles, de uma forma ou de outra. Destes, podemos citar “Tudo Sobre Minha Mãe” (vencedor do Oscar), “Fale com Ela” e o mais recente “Os Abraços Partidos”.
Seus assuntos sempre foram polêmicos. Sua capacidade de discutir temas tabus com grande naturalidade sempre foi seu forte. Dentre os assuntos recorrentes encontram-se a homossexualidade, os travestis, o uso de drogas, a doação de órgãos e o que tomamos como valores morais. As situações absurdas encontradas em suas películas o permitem discutir suas questões profundamente, porém de forma divertida e emocionante ao mesmo tempo. Sem nunca abandonar o humor, Almodóvar nos guia por caminhos contidos em nós mesmos, pelos quais só a arte pode nos acompanhar.

quarta-feira, 14 de abril de 2010

Um Cão Andaluz e o Surrealismo

“Um Cão Andaluz” é um curta-metragem feito em 1929, por Luis Buñuel e Salvador Dalí. A inovação totalmente desregrada da estética e a falta de preocupação com a montagem cinematográfica rítmica fizeram deste o único filme totalmente bem sucedido na representação do manifesto surrealista no cinema, tornando-o uma referência indispensável para qualquer interessado em arte. Houve, posteriormente, “A Idade do Ouro”, mas que não obteve tanto sucesso quanto seu precursor.

A idéia do filme consistia em partir de um princípio onírico. Escrever um roteiro da mesma matéria abstrata da qual são feitos os sonhos. Qualquer ligação racional entre atos era imediatamente descartada. O curta deveria ser limpo de impressões, críticas, símbolos e significados. O objetivo era causar, de acordo com a cena, o sentimento de repulsa e atração no espectador.

É antiga e natural a relação do cinema com os sonhos. Por meio dele, podemos assumir papéis que jamais assumiríamos na realidade. Exprimimos nossas fantasias.

Freud não se identificava muito com a sétima arte, mas a idéia de filmar o que não sabemos sobre nós mesmos se mostrou imensamente rica naquela época. Quantas vezes nós somos surpreendidos, em nossas experiências oníricas, por planos e cortes cinematográficos? Talvez nosso inconsciente faça o papel do fotógrafo e nós, protagonistas, participamos da ação em primeira ou terceira pessoa.

O automatismo psíquico apresentado no Surrealismo é uma técnica muito criticada nos dias de hoje, mas é onde podemos perceber a relação entre a ideologia de Buñuel e o seu cinema. Escrevendo cenas aparentemente sem nexo, ele criticava as produções extremamente racionais da década de 20 (próprias de uma arte que está buscando sua linguagem), afinal, como pode a arte ser algo puramente racional?


“Nada, no filme, simboliza qualquer coisa. O único método de investigação dos símbolos seria, talvez, a psicanálise”


Luís Buñuel


Dalí e Buñuel se desentenderam e seguiram caminhos completamente diferentes. Hoje dispensamos tempo para fazer análises semióticas desse filme e imaginar o que escondia o inconsciente dessas duas grandes personalidades. Na verdade, trata-se de uma obra apreciável apenas individualmente e que nos toca de forma diferente a cada vez que assistimos. Como exemplo, é absolutamente pessoal a “descrição audiovisual” da antológica cena em que um homem corta, com uma navalha, o olho de uma mulher. Lembramos de forma diferente pois a nossa memória inventa de forma diferente, assim como também nunca é igual a forma de recorrermos a ela.