quarta-feira, 3 de março de 2010

Gritos e Sussurros - Ingmar Bergman

Gritos e Sussurros é daquelas raras experiências que um espectador carrega por toda a sua existência” – disse Luiz Carlos Merten, d’O Estado de São Paulo. Devo dizer que concordo inteiramente com suas palavras e completo que esse é um dos mais complexos filmes da carreira de Ingmar Bergman e, por estarmos falando de arte, jamais deve ser totalmente racionalizado.

Aponto, em princípio, à marcante presença do tempo. Agnes, a primeira personagem a ser mostrada, tem seus dias contados, pois é consumida por uma doença terminal que provoca incríveis dores em seu corpo. O intenso e não correspondido amor por sua mãe (morta há mais de vinte anos) causou grandes danos à sua formação psicológica, o que se manifesta na forma de lidar com a doença. No decorrer da película, acompanhamos a estória de mais três mulheres que moram na mesma casa que Agnes (duas das quais são suas irmãs): Karin, Maria e Anna.

Karin é uma mulher amargurada que deseja, mesmo inconscientemente, ter sempre um fardo para carregar, um motivo para reclamar da vida. Ela teme o afeto, vive fugindo das pessoas e, por isso, não ama ninguém. Até o toque físico a incomoda.

O sexo sempre foi sinônimo de culpa na nossa sociedade, mas para Karin esse sentimento parece intensificado. Ela é casada com um homem arrogante que não lhe dá valor e, em nome do propósito de desestimular o marido, a personagem chega ao ponto de inserir um caco de vidro na própria vagina para não se ver obrigada a transar com ele.

Maria é uma mulher desiludida, pois foi frustrada na tentativa de se sentir desejada. A indiferença, a impaciência e o tédio tomaram conta da sua vida desde então. Seu recuo diante da responsabilidade de ajudar a irmã na hora da morte, exemplifica seu egoísmo. Interpretada pela maravilhosa Liv Ullman, a personagem apresenta enorme semelhança com a mãe, que fora extremamente solitária.

Anna é uma serviçal que carrega um acontecimento trágico na memória: a morte de sua filha, falecida na juventude. Por isso a personagem se sente grata por ter alguém para cuidar, sendo a única que dispensa uma atenção real à Agnes. Ambas nutrem uma relação de dependência, evidenciada em momentos que insinuam um contato hora materno, hora homossexual.

É curiosa a forma como as frustrações dessas quatro mulheres estão diretamente relacionadas à casa onde passaram a infância. Nela, sussurros se manifestam nas horas de flashback, inundadas por um vermelho (segundo Bergman, a cor da alma) sangue que é abusado em toda a belíssima fotografia, criada pelo genial Sven Nykvist. Gritos são ouvidos da enferma e das dores de cada uma das irmãs. O cenário é vasto e grandioso, mas não deixa de sugerir um ambiente claustrofóbico, intensificado pelos longos momentos de silêncio e pela escuridão que permeia o filme, o que causa um clima mórbido, conhecido como a marca registrada do diretor.

A doença vence Agnes, que morre com muito sofrimento, numa cena visualmente fantástica na qual a iluminação enegrece à medida que a vida se esvai do seu corpo. A questão que nos vem à cabeça é: “o que é viver com dignidade?”

Com a morte da doente, Karin e Maria percebem que têm uma relação demasiadamente estranha. A primeira tem medo de se deixar envolver. Ambas têm muitas lembranças em comum, mas só se dispõe a conversar sobre banalidades. Numa das cenas mais lindas do filme, Karin grita: “Maria, olhe para mim!” e o som ambiente dá lugar a uma música belíssima. Em seguida vemos os lábios das irmãs se mexendo, mas não conseguimos escutar suas vozes. Suas mãos se tocam, uma à outra. É o momento em que elas, pela primeira e única vez, conversam verdadeiramente, se descobrem, se conhecem e se tateiam. A pauta da inusitada confraternização é obscura para o espectador, mas não importa. Por um momento, elas parecem felizes. Nós, seres humanos, definitivamente precisamos do outro para a nossa afirmação, seja um namorado (a), amigo (a), parente ou terceiros.

Bergman se vale de seus conhecimentos sobre a mente humana para criar um drama totalmente psicológico e atemporal, que reflete sobre temas como a dignidade, o homem e as nossas angústias. Além disso, o filme é repleto de críticas sutis, como o momento em que Anna, após rezar fervorosamente, morde uma maçã (o ato questiona a autenticidade de ter fé pelo simples fato de temer Deus).

Ao final do filme, o real dá lugar ao imaginário (coisa que voltará a acontecer no longa-metragem Fanny e Alexander). Anna escuta o choro de um bebê, provavelmente sua filha, enquanto se direciona ao quarto da mulher falecida. À porta, catatônicas, estão Maria e Karin. Ambas tentam dizer algo, mas não conseguem. Estão incapacitadas, apáticas. No interior do cômodo, deitada, já no início do estado de putrefação, se encontra Agnes, de olhos fechados. Mas algo sobrenatural acontece: duas lágrimas escorrem-lhe pelo rosto. Percebemos que, mesmo morta e cansada, a mulher não havia conseguido deixar suas pessoas amadas. Ela conta o motivo da volta dizendo que, ironicamente, não consegue dormir. Sua voz ecoa, mas seus lábios não se movimentam.

“Agnes chama Karin” – anuncia Anna, mas a mulher chamada mal se digna a entrar no quarto, pois sente nojo, não quer se envolver com a morte.

“Agnes chama Maria” – torna a dizer Anna, mas dessa vez à irmã que sobrara. Maria entra no quarto e luta para satisfazer as vontades da falecida, que só pedia um pouco de carinho, mas se desespera ao sentir o toque e o beijo gelados do cadáver, deixando o quarto.

Ambas as irmãs tentam justificar, para elas mesmas, a relutância em apoiar um membro da própria família. Uma está acometida pelo asco e a outra pelo medo.

Anna, que até então fora a única a demonstrar algum afeto por Agnes, toma a morta nos braços e despe o próprio seio esquerdo, num movimento extremamente materno que nos lembra a amamentação. A imagem formada é tão bela e impactante que nos dá a impressão de ser uma pintura, cujas cores escurecem, gradativamente.

Depois de uma temporada na casa da infância, chega a hora das irmãs remanescentes irem embora. Após a morte de Agnes, a intolerância, a ingratidão e o egoísmo voltam a predominar na vida de ambas. O toque da alma que haviam experimentado antes, volta a significar apenas o toque superficial da pele. A arrogância se mostra um artifício usado apenas para esconder a insegurança e a baixa auto-estima.

A final de todas as contas, a enferma (que tinha todos os motivos para ser infeliz) foi a única que experimentou a alegria (e talvez até a felicidade), pois só ela amava verdadeiramente as irmãs e se satisfazia em tê-las ao seu lado. Ela viveu uma perfeição momentânea totalmente cabível no seu conceito pessoal, mesmo sabendo ser essa uma idealização efêmera e fugaz da vida.



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