segunda-feira, 15 de março de 2010

O Passageiro - Profissão: Repórter (Michelangelo Antonioni)


Considerado uma das grandes obras-primas do mestre Antonioni, “O Passageiro” apresenta uma apuração técnica quase perfeita. O filme deixou todos boquiabertos na época de seu lançamento, devido à grande inovação da linguagem cinematográfica.

A estória contada é a de David Locke, um repórter que está hospedado na África com o objetivo de filmar um documentário sobre guerrilha. Sua solidão e a falta de tato para a comunicação (dois dos temas preferidos do diretor) são intensificadas por desertos e outras vastas paisagens, além da dificuldade de se expressar e compreender uma língua que não é sua. Isso acaba por nos remeter ao filme “O Deserto Vermelho”, apesar deste se passar quase todo num espaço urbano.

A trajetória de Locke começa quando ele encontra o corpo de seu vizinho de quarto, David Robertson, um homem misterioso que reluta em revelar os feitos de sua vida. Há uma notável cena em que a câmera se direciona para o ventilador e, quando se volta para Locke, ele aparece vestindo a camisa de Robertson. Esse é o momento em que a personagem principal decide, num impulso, trocar de identidade com o morto. A partir daí, o protagonista guia seus dias pela agenda do falecido.

Para a compreensão do filme, é importantíssimo que se preste atenção em duas coisas: o som e os detalhes. Os detalhes escondem peças essenciais para o entendimento do todo, e o som, além de nos dar pistas, é usado com maestria como um elemento dramático fortíssimo. A fotografia é repleta de travelings invejáveis, que brincam, a todo o tempo, com os flashbacks reveladores construídos pelo diretor. Aprendemos mais com os sinais implícitos do que com as falas das personagens.

A atitude impulsiva, mostrada no filme, desemboca numa reflexão sobre o nosso cotidiano e sobre como nos condicionamos a traduzir e interpretar situações sempre da mesma maneira. Nosso dia-a-dia é o que esperamos que ele seja e, mesmo que nos incomode, não fazemos muita coisa para mudá-lo. Apesar disso, o desconhecido é uma das coisas que mais nos inebriam, atraem e motivam.

Aos poucos, Locke toma um conhecimento maior da vida de Robertson. Descobre, por exemplo, que ele mantinha um romance homossexual e que era traficante de armas. Assim, o protagonista encontra-se na difícil situação de fornecê-las para os guerrilheiros africanos, que eram o tema de seu documentário. A película se torna muito politizada, mostrando o totalitarismo e a falta de liberdade de expressão, sendo que chega a mesclar a história fictícia do filme com uma cena real da execução de um guerrilheiro.

Vendo-se no centro de um emaranhado de possibilidades difícil de ser desfeito, a personagem principal sente que corre risco de vida, o que a faz se esconder nas grandes e sombrias construções de Gaudí. É numa delas que ele se depara com uma mulher atraente por quem irá se apaixonar mais adiante, cujo nome nunca é revelando. A mulher se torna sua cúmplice, ajudando-o a encontrar uma saída de seu turbilhão, sem que fosse preso ou morto.

Nessa altura da película, entendemos porque Locke decidiu trocar de identidade. Ele quis fugir de tudo que havia deixado para trás: sua mulher, seu emprego e seus amigos. Mas chegou à conclusão de que é muito difícil deixar os hábitos deveras, assim como também o é à nossa personalidade.

O protagonista chega a um ponto em que questiona a capacidade do ser humano de mudar o que ele é. “Só há um ‘eu’” – diz ele. Ainda assim percebemos mudanças no seu comportamento, como seu egocentrismo (exemplificado numa cena em que o entrevistado vira a câmera para o entrevistador, que por sua vez a desliga) que, gradativamente, se transforma. Seus gostos mudam, assim como sua forma de olhar para a vida.

Quando chegamos aos últimos minutos do filme, temos a impressão de que toda a película foi apenas uma preparação para o que vem em seguida: o grande, magnífico e derradeiro final. Um plano-seqüência enigmático e perfeito, com sete minutos de duração. A câmera se aproxima, vagarosamente, da janela do quarto em que Locke está hospedado. Do lado de fora, é possível ver um garotinho jogar uma pedra num cego, a “mulher-sem-nome” atravessar a rua e o táxi Andalucía passar de um lado a outro da paisagem enquanto um estranho carro é estacionado. Dele, descem dois homens: um negro e um branco. O primeiro se dirige ao hotel enquanto o outro vigia a entrada. A câmera é deslocada para a direita, onde se pode ver o reflexo do homem negro num vidro. Ele aponta, supostamente, uma arma para Locke. Um tiro é abafado pelo barulho da aceleração de um carro. A polícia chega. Num movimento misterioso que até hoje não foi totalmente desvendado, a objetiva passa por entre as grades da janela e continuar a filmar do lado de fora. A câmera gira no pátio externo até se voltar para o quarto novamente, mas dessa vez num outro ângulo. Estão enquadrados a mulher-amante, policiais, o dono do hotel, o corpo inerte de Locke e sua esposa. Alguém pergunta à cônjuge de David: “Você reconhece esse homem?” Ela responde que não. A mesma pergunta é feita à amante, que responde que sim.

Não creio que a esposa estivesse mentindo. O ponto é que o protagonista se perdeu no labirinto de suas duas identidades, não sabia mais quem ele era. Seu “eu” se modificou de forma tal que seu rosto se tornou irreconhecível (metaforicamente) até mesmo para seus entes íntimos. Só foi possível sua identificação pela pessoa que acompanhou seu processo de busca da real personalidade. Acima de tudo, nos restam duas questões: a certeza de que somos quem nós construímos durante toda uma existência, e a dúvida em saber se isso pode ser mudado.



2 comentários:

Emerson Ferreira disse...

Parabéns pela análise! Eu assisti este excelente filme e gostei da história mas não entendi onde Antonioni quis chegar, então resolvi procurar na internet algumas resenhas e de todas que li esta é a mais esclarecedora, revi os minutos finais e finalmente entendi.Parabéns!!!
:D

Felipe disse...

Muitíssimo Obrigado! =D