sexta-feira, 1 de janeiro de 2010

Deus e o Diabo na Terra do Sol - Glauber Rocha

“Vou contar uma estória

Na verdade e imaginação

Abra bem os seus olhos

Pra escutar com atenção

É coisa de Deus e o Diabo

Lá nos confins do sertão”


O filme “Deus e o Diabo na Terra do Sol”, de Glauber Rocha, tem a cara do Brasil. Não o Brasil que as classes média e alta estão acostumadas a ver, mas um Brasil miserável, um país que tem fome.

Ressalto a importância das letras das músicas para a compreensão total do filme.

Manuel é um vaqueiro que viaja com as vacas do Coronel Antônio Moraes, com o intuito de que elas cheguem salvas no seu destinatário. Como recompensa, receberia algumas cabeças bovinas. Algumas vacas acabam por morrer no caminho e, chegada a hora da partilha, Manuel leva um “cano” do Coronel, pois este diz que os animais que morreram foram justamente os do vaqueiro. O protagonista mata Antônio Moraes e foge com sua esposa, Rosa, junto com um cortejo que acompanha um negro que diz ser São Sebastião (no filme, ele representa a figura de Deus). O povo acredita cegamente nesse homem, que prega um discurso totalmente revolucionário, dizendo que um mundo com tanta diferença econômica só poderia estar errado.

A igreja, percebendo que o falso santo movimentava o povo para uma revolução no âmbito social e econômico, encomenda sua morte para um jagunço matador de cangaceiro, Antônio das Mortes. Indiretamente, o próprio governo é que encomenda tal morte, já que a igreja é regida pelos interesses do Estado.

A todo tempo, Rosa diz a Manuel para deixar Sebastião e partir para ganhar a vida, mas o protagonista hesita entre sua esposa e sua fé, até que chega a conclusão de que ela está possuída pelo demônio e decide “lavar sua alma” (por sugestão de Sebastião) com o sangue de uma criança. Rosa se aproveita de uma distração de Sebastião e o mata.

Essa primeira parte do filme nos mostra a miséria do sertão e a fome, dois temas que se encontram no âmago do Brasil e se fazem muito presentes na obra de Glauber. Também mostra a alienação de um povo medíocre, sem nada de concreto construído em sua base, que se deixa levar por um enganador que diz ter parte com Deus.

Antônio das Mortes chega ao Monte Santo (onde se encontram Sebastião e seus seguidores) e encontra o falsário morto. Decide então matar todo o seu povo, com o pensamento de que tais pessoas sofreriam menos mortas do que vivas.

Na segunda parte do filme, Manuel e Rosa são guiados por um cego até Corisco, o último cangaceiro vivo (representando o Diabo). O protagonista entra para o cangaço e inicia uma nova luta, mas ironicamente, com o mesmo objetivo revolucionário da luta anterior – acabar com o governo que apóia a diferença econômica entre classes. Deus e Diabo unidos numa mesma causa.

Rosa, que não gosta nem um pouco da cega luta do marido, encontra consolo na esposa de Corisco, numa cena em que lhe entrega a flor de um cactos, e a outra lhe entrega um lenço. Ambas se acariciam num movimento alusivo a uma quase-homossexualidade.

“Quem matou Sebastião foi a mão do ciúme, Rosa matou a fé de Manuel.”

Manuel finalmente percebe que, por mais que compartilhe da causa, aquele luta não é dele. Ele não acha certo fazer justiça com derramamento de sangue. Mas agora ele não tem mais saída. Antônio das Mortes está a caminho (junto com as tropas do governo) para matar Corisco, e Manuel é sua única ajuda para escapar vivo.

Glauber nos mostra como os nossos conceitos de bem e mal são mutáveis quando Corisco (que antes era o Diabo) se transforma na representação de Deus, e Antônio das Mortes, um mero jagunço, representa o Satanás.

Num inteligente discurso de Corisco, é mostrada a dualidade que a política do Brasil vivia naquele momento (1964). A dúvida entre a arma e o rosário (mas trazendo para o nosso contexto, a dúvida entre a guerrilha e a manifestação pacífica, o protesto).

Rosa beija Corisco, demonstrando sua vontade de que ele vença. Logo depois Antônio das Mortes o mata.

Nessa parte, nos é presenteada a fantástica cena final, em que Rosa e Manuel são mostrados fugindo, em travelling, num plano geral que abrange e revela toda a idéia de sertão mostrada no filme: seco, infértil, quente e miserável. Eles correm ao som dos versos musicados: “Sertão vai virar mar e o mar virar sertão” (essa frase é muito falada durante todo o filme). Rosa cai, mas Manuel não pára para ajudá-la. Ele continua correndo, desesperado, ao som da frase que, para mim, resume todo o filme:


“Assim, mal dividido, esse mundo anda errado

Que a Terra é do homem, não é de Deus nem do Diabo”


E o sertão vira mar.



PS: Viajarei amanhã e voltarei apenas no dia 11, nesse meio tempo estarei impossibilitado de postar.
Feliz Ano Novo!

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