sexta-feira, 18 de dezembro de 2009

Persona - Ingmar Bergman


"O irrealizável sonho de existir, não o de parecer, mas o de ser"


Ao organizar minhas idéias para escrever este texto, a impressão que tenho é que deixei escapar muita coisa, mesmo tendo assistido o filme mais de uma vez. Mas se tratando de uma obra-prima tão complexa do cinema, não poderia ser diferente. Em síntese, o filme nos mostra uma atriz (Elizabeth) que, por um motivo misterioso, opta pelo silêncio no meio de uma apresentação da peça “Electra” e determina que nunca falará novamente. Uma enfermeira (Alma) é designada para observá-la e, juntas, vão morar numa casa no litoral.

Tudo parece colaborar para fazer do filme uma obra-prima ou “um marco na arte moderna”, como afirmam alguns. A começar pela antológica seqüência inicial, na qual imagens, aparentemente sem sentido lógico, são mostradas: o processo de ligar um projetor de cinema (num exercício lindo de metalinguagem), um falo ereto, uma aranha, um filme antigo, a mão de Jesus sendo pregada numa cruz, os órgãos internos de um cordeiro, dentre outros. É uma cena que nos lembra a questão do “inconsciente no cinema”, proposta por Buñuel e Dalí.

Também chamo a atenção para a brilhante direção de Ingmar Bergman (como sempre, maravilhoso), a linda fotografia de Sven Nykvist e as atuações fantásticas e viscerais das atrizes Liv Ullman e Bibi Andersson.

Neste filme, Bergman volta a dois de seus temas recorrentes: o silêncio e a relação lesbiana entre duas pessoas (que não são, necessariamente, homossexuais).

Quando chegam à casa de praia, as protagonistas se tornam amigas. Alma sente uma profunda admiração por Elizabeth e tenta compreender o motivo de seu silêncio. A enfermeira se sente confortada pela falta de som e à vontade para falar de sua vida. Ela conta coisas que nunca havia dito a ninguém, como a vez em que transou com dois desconhecidos numa praia. Nos dias atuais, a correria da rotina torna impraticável uma conversa como esta. Isso nos mostra que o silêncio (saber ouvir) é o caminho para a sinceridade e que tudo que queremos é alguém que nos ouça.

A admiração de Alma cresce e Elizabeth se mostra cada vez mais enigmática, até que um dia a enfermeira lê uma das cartas da atriz e descobre algo que a deixa desapontada: Elizabeth escutava-a e lhe dava atenção apenas para estudá-la, pois no fundo, ela a encarava como um interessante objeto a ser observado. A atriz se revela uma mestra em penetrar na mente alheia e dissuadir opiniões, mas isso não inibe o fato de que ela gostava verdadeiramente de Alma.

A enfermeira fica chateada, e decide insistir que Elizabeth fale algo, uma palavra que seja. O silêncio pode ser algo que todos queremos, mas o silêncio inabalável se torna insuportável. Alma ameaça jogar-lhe água fervente na cara e, finalmente, a atriz diz a frase: “não faça isso!”. Depois de semanas calada ela abre a boca com apenas um fim: protestar.

Com o tempo, as protagonistas desenvolvem uma relação de entrosamento emocional fortíssimo. A atração que sentem, uma pela outra, se torna sexual, pecaminosa. Isso desencadeará um final decididamente surreal. Começam a acontecer constantes trocas de identidades entre as duas, sendo que até mesmo o marido de Elizabeth se confunde ao tentar discernir qual mulher é qual. Elas se tornam uma só pessoa (numa cena em que os rostos das personagens se fundem). Atriz e enfermeira são lados da personalidade de um mesmo ser humano. A vida de uma reflete na da outra e isso resulta num sentimento de repulsa. Alma deseja se desvencilhar dessa enigmática crise de identidade, mas não consegue. A enfermeira quer atingir emocionalmente a atriz e vice-versa. Para conseguirem isso, elas fazem com que surjam os fantasmas do passado de cada uma. Ambas se frustraram terrivelmente como mães, como “doadoras da vida”.

Por fim, elas voltam ao início. Estão novamente na sala de hospital do início do filme, agora com uma ligação emocional mais tênue, como se tudo fosse uma lembrança distante. Alma obriga Elizabeth a dizer “nada” e a deita numa maca. O perigo do silêncio já não existe mais, nem a intimidação que ele representou durante o filme.

Este é um filme que fala sobre os papeis que desempenhamos durante toda a vida e a face que mostramos para determinadas pessoas que nos rodeiam. Não somos a mesma pessoa para nossos pais, amigos, colegas de trabalho, escola, filhos, dentre outros. Uma atriz é uma mulher que, no palco, abstrai de parte da pessoa que ela é e incorpora características da personagem nas suas próprias que sobraram. Por isso Bergman escolheu uma atriz como personagem principal. Personagem essa que cansou de representar (não só no palco, mas na vida) e cansou de mostrar uma face diferente para cada grupo de pessoas que aparece na nossa vida. O único modo que encontrou de realizar tal feito, foi fechando-se em seu silêncio, pois falar também é uma forma de atuar. Ela queria se mostrar nua ao mundo, tal qual ela é, desprovida de experiências anteriores. Como uma folha de papel em branco, pronta para ser preenchida. “O irrealizável sonho de existir, não de parecer, mas de ser”. O próprio título do filme exemplifica isso muito bem: “Persona”, do latim, máscara.

Durante o filme, Alma vê seus maiores sonhos ruírem: casar-se, ter filhos e uma vida estável ao lado do marido, enquanto Elizabeth quer se livrar desses papeis pré-concebidos pela sociedade.

“Quando quis tirar a máscara, estava apegada à cara”

(Fernando Pessoa)

As faces que mostramos (um lado parcial do que realmente somos) ou as nossas máscaras, tomam conta da nossa personalidade. Isso é uma coisa que talvez seja inerente ao ser humano e natural do nosso comportamento. Não somos melhores nem piores por isso, apenas somos. A tentativa de nos livrarmos das nossas personas é uma tarefa quase impossível, pois se conseguíssemos, seríamos uma farsa. Afinal, somos o resultado da sobreposição das nossas personas.


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